sexta-feira, 7 de junho de 2013

A MORTE DO XAMÃ - 41




Os ensinamentos relativos à morte do Xamã assumem formas bastante diversas nas cerimônias dos povos da América Nativa. No entanto, todas elas possuem um ponto em comum: a idéia de que a morte representa o início de um ciclo de vida. Já que a manifestação da vida é vista sempre de forma dinâmica, dentro da roda de medicina, tudo aquilo que termina significa, por sua vez, o início de alguma coisa nova.

A roda da vida possui inúmeros aros, os quais assinalam as diversas lições de vida e os diversos degraus que cada ser vivo precisará enfrentar ao percorrer a estrada de sua vida física. Esses passos recebem o nome de Boa Estrada Vermelha e representam o sopro da vida, que nos chega em forma de espiral, proveniente do Grande Mistério. Os nativos americanos aprendem, desde pequenos, que nenhuma pessoa deve julgar os passos que as outras estão dando em seu processo de crescimento; esse julgamento não passa de uma atitude tola e improdutiva.

À medida que a roda da vida gira, todos os seres humanos chegam aos lugares em que deverão aprender lições idênticas. É neste momento que a morte do xamã entra em cena. Cada vez que a lição de um determinado raio da roda de vida é aprendida, a roda gira para que já comece a aparecer a lição contida no raio seguinte. As facetas sombrias de nosso Ser, aqueles ângulos obscuros que inibem o nosso crescimento, são constantemente condenadas à morte.

Essas mortes ocorrem diariamente, sejam elas nossos medos, nossas dúvidas, nossos maus hábitos, nossos pensamentos negativos ou nossa autoimportância. Essas mortes demarcam o caminho do nosso progresso espiritual e nos revelam, a cada momento, que o ser humano possui a capacidade de caminhar em beleza. A morte de um ângulo sombrio de nossa personalidade sempre serve como prenúncio do nascimento de um novo dom ou talento já contido no âmago de nosso ser. Cada vitória conseguida sobre alguma parte de nosso der que não esteja caminhando em beleza significa em si mesma um nascimento. Toda vez que alguma pessoa alcança uma encruzilhada em sua vida e se vê frente à necessidade de tomar uma decisão e mudar de atitude, dá-se a morte do velho e o nascimento do novo.

O Xamã é uma pessoa sempre pronta a confrontar os seus medos mais profundos e todos os aspectos sombrios de seu vida física. Na época em que eu trabalhava com Joaquin e as duas vovós no México, aprendi qual a diferença entre um curador e um Xamã. Um curador é aquela pessoa que sabe como utilizar as forças da natureza para efetuar uma cura no corpo físico, mental ou espiritual de outra pessoa. O curador - ou curandeiro - jamais usa as forças da sombra para efetuar as curas. Já o Xamã é um curador que desceu aos seus próprios mundos sombrios, confrontando-se com seus medos mais ocultos e também com o subterrâneos da maldade alheia.

Isto lhe trouxe a capacidade de saber lidar tanto com as forças das trevas quanto com as forças da luz. Um verdadeiro Xamã está apto a praticar exorcismos, a desfazer feitiços e a reverter os efeitos de atos de magia negra realizados contra alguém. É claro que o Xamã sabe praticar curas tão bem quanto qualquer curador espiritual, porém só mesmo um Xamã sabe lidar com qualquer tipo de magia negra que possa ter levado um pessoa a contrair algum tipo de enfermidade.

Há muitas pessoas hoje em dia que se denominam Xamãs sem nem sequer saber o que isto significa exatamente. Se esses pretensos Xamãs não possuírem a capacidade de mergulhar em seus próprios subterrâneos sombrios, não estão aida preparados para seguir o verdadeiro caminho do Xamã. Uma pessoa destas não está preparada para confrontar os resultados de um trabalho de xamanismo negro. É bastante comum encontrar-se a mistura da magia negra com a magia branca de cura entre a população do México, da América Central e da América do Sul.
Muitos Xamãs  " morreram por terem despertado a ira dos praticantes da magia negra ao tentarem proteger os outros. Ao norte da fronteira mexicana o uso trevoso da xamanismo, já não é tão comum mas, mesmo assim, porque sabem que ele existe. Os verdadeiros Xamãs não precisam ficar se gabando nem se exibindo para os outros. Eles trabalham em silêncio e em total humildade porque sabem que aos olhos do Grande Mistério o seu valor já está sendo reconhecido. As opiniões alheias jamais mudam o senso de ser de um verdadeiro curandeiro ou Xamã.
 
 Um Xamã é aquele indivíduo que caminhou até os portais de seu inferno pessoal e teve coragem de entrar.
Um verdadeiro Xamã é aquele que enfrentou e venceu os demônios autoconcebidos do medo, da insanidade, da solidão, da autoimportância e dos vícios ao passar pela gama de mortes do Xamã.
 
A qualidade que melhor define um Xamã de verdade é o seu sentido de compaixão pelos caminhos que os outros ainda precisam trilhar, já que também atravessou o mundo subterrâneo das sombras e conhece diretamente a dor e o sofrimento envolvidos neste processo. Um destes rituais de morte e renascimento é chamado a Noite do Medo. Esta tradição é praticada por muitas tribos norte-americanas como meio de enfrentar e vencer o medo antes de embarcar numa busca de visão. Para cumprir este rito de iniciação, o nativo deve dirigir-se a um local isolado da floresta e cavar sua própria sepultura. Depois, deve deitar-se nessa tumba sozinho e passar a noite toda ali. A abertura da cova é tapada com um cobertor. Ele fica deitado ali, escutando os sons da floresta e os gritos dos animais noturnos. Os sons servem como catalisadores e fazem com que os medos ocultos da pessoa venham à tona, para serem confrontados e reconhecidos. A pessoa que está passando por esta iniciação não consegue enxergar nada através do cobertor: portanto, os sons, muitas vezes bastante amplificados pela própria imaginação da pessoa, constituem neste hora o seu pior inimigo. Um imaginação fértil acaba criando um estado de medo tão intenso que pode levar a paralisação dos sentidos, ou então, pode aflorar uma grande coragem interna, que se encontrava, até então, em estado latente. Depois que aquela pessoa passa a noite inteira acordada, confrontando os medos sombrios que assombram a imaginação, ela se encontra preparada para iniciar sua Busca de Visão.

Existe outro gênero de ritual da morte do Xamã praticado nos planaltos mexicanos. Para a realização desta cerimônia, começa-se despindo a pessoa totalmente. A seguir, membros do tribo da mesmo sexo pintam-lhe o corpo todo com símbolos referentes ao Morcego. Bem no centro da aldeia cava-se um buraco, de forma a permitir que só a cabeça fique de fora. Feito isto, a pessoa é enterrada no buraco, onde ficará de pé por um período de vinte e quatro horas. Todos os membros da aldeia então passam a xingá-lo, jogam terra em sua cara e urinam ou defecam perto da cabeça daquela pessoa enterrada e indefesa. O iniciado não deve responder a qualquer destas provocações verbalmente. O horror de tudo isto que está acontecendo acaba por destruir muitos dos conceitos que a pessoa tinha de si própria. Estas indignidades costumam constituir uma surpresa total para o iniciado e devem ser enfrentadas em silêncio e com coragem. Nunca se explica de antemão tudo o que vai acontecer durante estas iniciações; o iniciado recebe somente algumas noções gerais antes do inicio da cerimônia.

Após o final da provação de vinte e quatro horas, o iniciado é retirado do buraco e levado para um rio a fim de ser lavado e perfumado. Os outros membros da aldeia vestem-no com uma nova roupa branca e enfeitam-no com flores. Voltam todos à aldeia, onde tem início a última surpresa: uma festa em homenagem ao deus morcego, que assistiu o iniciado durante todo a cerimônia e ajudou em seu renascimento. Aqueles indivíduos que não conseguem suportar a prova são retirados de terra, lavados e passam a receber cuidados especiais até se sentirem curados da doença do Xamã.
Essa  doença, que beira a insanidade, pode minar todo o autocontrole do Xamã e provocar uma ruptura da personalidade. Em algumas aldeias é possível encontrar um ou dois iniciados que perderam o contato com a realidade durante o processo e são tratados como pessoas " tocadas pelos Deuses ".

O objetivo destas modalidades de morte de Xamã é fazer com que a pessoa enfrente o jogo da insanidade, o que torna sua mente mais forte e impede que alguma feitiçaria possa agir sobre ela, tentando " ajustar seu pensamento". O ajuste do pensamento consiste numa invasão telepática que uma pessoa treinada consegue efetuar sobre a mente de uma outra pessoa, mais desavisada.

Esta é uma antiga técnica usada para controlar idéias ou atitudes de outras pessoas, através do poder que se consegue sobre a mente delas. Muitos Xamãs negros procuram levar os Xamãs brancos à loucura invadindo seus sonhos ou usando táticas para amedrontar e enlouquecer suas vítimas. Desta forma, eles tentam afastar e neutralizar todos aqueles que lutam pela correta utilização do xamanismo, ou seja, aquelas pessoas que se opõem ao uso indevido dos poderes mágicos. Por isto, é imperioso que os aprendizes estudem sob a orientação de um verdadeiro Xamã, que seja bem treinado e bastante experiente. Querer mergulhar no mundo do xamanismo sem receber a orientação adequada, principalmente nos países que praticam regularmente a magia negra, pode vir a ser perigoso e até fatal.

O xamanismo é também a capacidade de comungar com todos os espíritos que habitam em todos os níveis da criação.
Algumas pessoas possuem esta capacidade desde cedo e podem ser muito mal interpretadas. O Xamã natural muitas vezes foi vítima de algum evento traumático entre um e sete anos de idade. Estes acontecimentos traumáticos costumam romper a matriz embrionária do ego e destruir o sentido natural de limites que a criança possui. Quando o sentido natural de individuação e a percepção do próprio espaço sagrado se enfraquecem, começa a se estabelecer uma comunicação involuntária entre aquele ser e vozes advindas de outros planos. Uma criança não é capaz de discernir quais são as vozes úteis e quais as vozes perigosas, podendo, assim deixar-se influenciar por espíritos perigosos, que continuam presos à terra. A situação se agrava quando a criança é mal compreendida pelos adultos que estão ao seu redor, podendo, nesses casos, desenvolver-se um quadro de esquizofrenia ou de divisão da personalidade.

Em nossa cultura moderna o tratamento desses sintomas é trágico. Nas culturas tribais mexicanos, porém, tenta-se orientar a criança, ensinando-a a eliminar as influências negativas e a aceitar as vozes positivas, que poderão transformá-la num Xamã talentoso mais tarde, quando crescer. O caminho natural desta criança especialmente dotada será pontilhado por diversas mortes do Xamã, com o objetivo de conduzi-la a um maior discernimento e a um fortalecimento do seu ser interno.

Toda vez que estas inevitáveis batalhas interiores são travadas, contam com toda assistência dos curadores e Xamãs mais experientes daquela tribo. Os melhores Xamãs que encontramos hoje em dia são aqueles " curadores curados ", que já trilharam o caminho da morte e do renascimento, destruindo as sombras que obscureciam sua clareza interior. Para a pessoa que já palmilhou esta difícil estrada, conseguiu vencer os obstáculos, e passou a integrar em si mesma os aspectos positivos, torna-se bastante fácil ajudar os outros a fazer o mesmo. Um Xamã que sabe reconhecer o lado obscuro do seu próprio Ser consegue facilmente diagnosticar uma escuridão semelhante nos outros indivíduos.

Toda vez que nos propusermos a confrontar as facetas mais sombrias do nosso Ser que estejam nos desviando do Caminho Sagrado para a totalidade e nos decidirmos a purificar estes aspectos através do processo de morte do Xamã, estaremos dando mais um passo admirável em nosso próprio caminho evolutivo. A morte do Xamã não existe só para os Xamãs. Sempre que alguém se propuser mudar velhos hábitos e recomeçar sua vida de forma nova e mais produtiva, estará manifestando um tipo de morte do Xamã. Se os velhos pés de milho não fossem arrancados e queimados, o solo não ficaria bastante fertilizado e os novos pés de milho não conseguiriam crescer no ano seguinte.

O Morcego é o símbolo Maia e Asteca do renascimento. O Morcego costuma ficar pendurado de cabeça para baixo na sua caverna, assim como os humanos ficam aninhados de cabeça para baixo, no ventre da mãe, quando estão prontos para nascer. O Morcego se sente seguro na escuridão da caverna, e o feto se sente protegido na escuridão do ventre materno.
 
Depois de sair do ventre, ou da caverna, a pessoa é obrigada a encarar tanto a luz quanto a sombra. Torna-se então necessário decidir qual destes lados permitirá maior crescimento ao seu próprio Ser.
 
A dualidade do atual universo só poderá ser harmonizada no Unimundo a partir do instante em que todas as pessoas forem capazes de enxergar que ambos os lados contribuem igualmente para o nosso processo de evolução.
A morte da Xamã constituí um símbolo deste crescente processo de Conscientização que nos conduz à Totalidade."

 
As cartas do caminho sagrado - Jamie Sams






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