Uma das capacidades do nosso cérebro é a de criar mapas. Mas
se tivéssemos que criar um mapa do nosso cérebro, em muitas partes teríamos que
escrever:"hic sunt leones" [aqui há dragões]. O cérebro é um
território impérvio e, em grande parte, desconhecido. Alguns cientistas, como
exploradores corajosos, tentam conquistar terreno para descobrir o
funcionamento desse esplêndido e misteriosíssimo órgão.
A reportagem é de Marco Filoni, publicada no jornal La Repubblica, 18-04-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ou, melhor, ele talvez seja o mais audaz e temerário dos exploradores. Neurocientista de fama mundial, nascido em Lisboa, Portugal, ele agora leciona em Los Angeles, onde também dirige o Brain and Creativity Institute. Ele deve a sua notoriedade aos seus estudos sobre a fisiologia das emoções, sobre memória e sobre o Alzheimer, além dos seus livros fundamentais.
Nestes dias, ele está em Veneza, onde na noite dessa quarta-feira, 18, ele recebeu o Prêmio Bauer-Ca' Foscari e inaugurou a série de encontros internacionais Encruzilhadas de civilizações. Nessa quarta-feira, também foi publicado pela editora Adelphi o seu último livro, Il sé viene alla mente, um livro sobre como o cérebro constrói a mente consciente.
Eis a entrevista.
O senhor começa o livro com uma citação de Pessoa: a alma como "uma misteriosa orquestra" e o conhecimento de si mesmo "como uma sinfonia".
Eu sou português, e Pessoa faz parte da minha cultura. E a analogia com a orquestra nos explica bem o que é a vida humana. Pensemos em uma peça de música. Há um projeto a ser realizado, a própria peça, depois há o maestro, os músicos etc. Mas para que o projeto se realize não basta tocar as notas de modo correto: há também os tempos a serem respeitados, a linha vertical da partitura. Assim, a vida humana é um pouco a mesma coisa.
A reportagem é de Marco Filoni, publicada no jornal La Repubblica, 18-04-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ou, melhor, ele talvez seja o mais audaz e temerário dos exploradores. Neurocientista de fama mundial, nascido em Lisboa, Portugal, ele agora leciona em Los Angeles, onde também dirige o Brain and Creativity Institute. Ele deve a sua notoriedade aos seus estudos sobre a fisiologia das emoções, sobre memória e sobre o Alzheimer, além dos seus livros fundamentais.
Nestes dias, ele está em Veneza, onde na noite dessa quarta-feira, 18, ele recebeu o Prêmio Bauer-Ca' Foscari e inaugurou a série de encontros internacionais Encruzilhadas de civilizações. Nessa quarta-feira, também foi publicado pela editora Adelphi o seu último livro, Il sé viene alla mente, um livro sobre como o cérebro constrói a mente consciente.
Eis a entrevista.
O senhor começa o livro com uma citação de Pessoa: a alma como "uma misteriosa orquestra" e o conhecimento de si mesmo "como uma sinfonia".
Eu sou português, e Pessoa faz parte da minha cultura. E a analogia com a orquestra nos explica bem o que é a vida humana. Pensemos em uma peça de música. Há um projeto a ser realizado, a própria peça, depois há o maestro, os músicos etc. Mas para que o projeto se realize não basta tocar as notas de modo correto: há também os tempos a serem respeitados, a linha vertical da partitura. Assim, a vida humana é um pouco a mesma coisa.
E que papel tem a consciência?
A consciência é uma grande peça sinfônica. Podemos dizer que ela é o principal ingrediente da mente, que, ao contrário, seria apenas cérebro, capaz de poucas operações básicas. A mente consciente, ao invés, têm diversos níveis de "si": o "eu primordial", o "eu nuclear", o "eu autobiográfico". Nós compartilhamos com diversos animais um tipo de consciência muito simples, que pode ser distinguida com o termo senciente. Em inglês, equivale a consciência, mas, para sermos mais precisos, é a condição de ser senciente. De fato, é um termo mais antigo do que consciência, deriva do latim “sentire”. Este é substancialmente um "eu primordial", que permite ter sensações como sentir dor e prazer, mas não refletir sobre essas sensações.
Coisa que nós, seres humanos, podemos fazer.
Graças a outros níveis, como o "eu nuclear" e o "eu autobiográfico". Assim, somos capazes não só de ser sencientes, mas também "reflexivos". Ou seja, temos a capacidade de especular sobre nós mesmos e sobre o que acontece conosco. Também na perspectiva da história e da memória: tudo o que acontece conosco é um eco do que passamos e ganha sentido no que acontecerá depois.
A consciência é, portanto, o que nos permite dar sentido às coisas?
Exatamente. O nível básico tem a ver com as sensações. O restante da consciência dá um quadro melhor e mais claro do que as coisas significam.
E que relação esse aspecto reflexivo tem com o corpo?
Toda ação material é modelada e forjada pelo cérebro. Há uma fusão constante entre cérebro e corpo. Tanto é que basta cortar esse vínculo que tudo entra em colapso. É o caso dos danos ao tronco cerebral, como acontece em certos casos de coma: tudo entra em colapso, física e mentalmente.
No livro, o senhor cita uma máxima de Francis Scott Fitzgerald: "Quem inventou a consciência cometeu um grande pecado".
Eu gosto muito de Fitzgerald: ele foi um escritor brilhante e o que me liga a ele é o fato de ele ter passado os últimos anos da sua vida em Los Angeles, onde eu vivo. Quando Fitzgerald tentou escrever para o cinema, ele fracassou miseravelmente. Isso porque ele era muito literário, muito sofisticado, enquanto os estúdios queriam histórias rápidas, diálogos fáceis e pouca reflexão. Desse seu fracasso, podemos deduzir a ideia que ele tinha: o fato de que a consciência, embora extraordinária, tem um lado obscuro, pois nos diz quem somos e onde fracassamos. Ela tem uma dupla face.
Podemos dizer que a consciência é uma espécie de roteiro da nossa vida?
Sim, isso mesmo, e podemos colocar as duas metáforas que usamos paralelamente: como seres vivos, temos na base uma sinfonia e, depois, quando alcançamos o nível da linguagem, temos um roteiro. E é isso o que fazemos: escrevemos as coisas, todas as vezes.
Portanto, somos nós que "escrevemos" a nossa consciência?
Nós somos os seus autores, em grandíssima parte, mas não totalmente. No passado, a natureza a escreveu para nós. Por isso, não somos completamente donos do nosso destino: muitas vezes, nos encontramos diante de coisas que não queríamos, mas que simplesmente aconteceram.
E essa consciência é sempre algo bom?
Quanto mais sabemos como somos feitos, mais podemos entender como funcionamos. Certamente, há a dupla face, quase perigosa (e Hitchcock me vem à mente), da qual Scott Fitzgerald falava, que nos mostra a tragédia da vida: viver e morrer. No entanto, esse conhecimento é a única possibilidade que temos de ajudar os outros a viver melhor.
Por que Alfred Hitchcock lhe veio à mente?
Eu gosto muito dele, particularmente o filme O homem que sabia demais. Perto do fim do filme, o protagonista interpretado por James Stewart diz algo mais ou menos assim: "Mesmo um pouco de conhecimento pode ser muito perigoso". De fato, no filme, ele terá um fim terrível.
Que importância tem a biologia no seu trabalho?
Tudo pode ser melhor entendido se o olharmos em uma perspectiva biológica. Os nossos sistemas biológicos são sistemas econômicos, ou seja, sistemas que operam em um ambiente social. Isso pode nos ajudar a compreender a nossa sociedade que, no fundo, se comporta como um sistema biológico, baseado no sucesso e no fracasso. Os sistemas morais, religiosos, econômicos, assim como as leis ou a medicina e as artes, nada mais são do que uma projeção de um sistema biológico.
E como se concilia esse viver biológico com a consciência que temos de nós mesmos?
A nossa condição de seres vivos é uma luta contra a doença e a morte. É uma batalha constante. Sempre devemos lutar para manter uma "condição homeostática". Essa condição oscila entre o bom funcionamento e o mau funcionamento. Desde o início biológico e evolutivo, historicamente, aparecem esses yin e yang, um sob a forma do prazer, e o outro sob a forma da dor. E viver é estar no meio disso. Devemos navegar entre a muita dor que te mata e a muita felicidade que te mata da mesma forma.
O senhor está satisfeito com as suas pesquisas?
Não, por nada: eu consegui esclarecer algumas ideias, mas descobri muitas outras a serem desenvolvidas e estudadas. Nas palavras de Scott Fitzgerald, no fim de O Grande Gatsby: somos um navio que sempre vai contra a corrente, um pouco para a frente e um pouco para trás.
A consciência é uma grande peça sinfônica. Podemos dizer que ela é o principal ingrediente da mente, que, ao contrário, seria apenas cérebro, capaz de poucas operações básicas. A mente consciente, ao invés, têm diversos níveis de "si": o "eu primordial", o "eu nuclear", o "eu autobiográfico". Nós compartilhamos com diversos animais um tipo de consciência muito simples, que pode ser distinguida com o termo senciente. Em inglês, equivale a consciência, mas, para sermos mais precisos, é a condição de ser senciente. De fato, é um termo mais antigo do que consciência, deriva do latim “sentire”. Este é substancialmente um "eu primordial", que permite ter sensações como sentir dor e prazer, mas não refletir sobre essas sensações.
Coisa que nós, seres humanos, podemos fazer.
Graças a outros níveis, como o "eu nuclear" e o "eu autobiográfico". Assim, somos capazes não só de ser sencientes, mas também "reflexivos". Ou seja, temos a capacidade de especular sobre nós mesmos e sobre o que acontece conosco. Também na perspectiva da história e da memória: tudo o que acontece conosco é um eco do que passamos e ganha sentido no que acontecerá depois.
A consciência é, portanto, o que nos permite dar sentido às coisas?
Exatamente. O nível básico tem a ver com as sensações. O restante da consciência dá um quadro melhor e mais claro do que as coisas significam.
E que relação esse aspecto reflexivo tem com o corpo?
Toda ação material é modelada e forjada pelo cérebro. Há uma fusão constante entre cérebro e corpo. Tanto é que basta cortar esse vínculo que tudo entra em colapso. É o caso dos danos ao tronco cerebral, como acontece em certos casos de coma: tudo entra em colapso, física e mentalmente.
No livro, o senhor cita uma máxima de Francis Scott Fitzgerald: "Quem inventou a consciência cometeu um grande pecado".
Eu gosto muito de Fitzgerald: ele foi um escritor brilhante e o que me liga a ele é o fato de ele ter passado os últimos anos da sua vida em Los Angeles, onde eu vivo. Quando Fitzgerald tentou escrever para o cinema, ele fracassou miseravelmente. Isso porque ele era muito literário, muito sofisticado, enquanto os estúdios queriam histórias rápidas, diálogos fáceis e pouca reflexão. Desse seu fracasso, podemos deduzir a ideia que ele tinha: o fato de que a consciência, embora extraordinária, tem um lado obscuro, pois nos diz quem somos e onde fracassamos. Ela tem uma dupla face.
Podemos dizer que a consciência é uma espécie de roteiro da nossa vida?
Sim, isso mesmo, e podemos colocar as duas metáforas que usamos paralelamente: como seres vivos, temos na base uma sinfonia e, depois, quando alcançamos o nível da linguagem, temos um roteiro. E é isso o que fazemos: escrevemos as coisas, todas as vezes.
Portanto, somos nós que "escrevemos" a nossa consciência?
Nós somos os seus autores, em grandíssima parte, mas não totalmente. No passado, a natureza a escreveu para nós. Por isso, não somos completamente donos do nosso destino: muitas vezes, nos encontramos diante de coisas que não queríamos, mas que simplesmente aconteceram.
E essa consciência é sempre algo bom?
Quanto mais sabemos como somos feitos, mais podemos entender como funcionamos. Certamente, há a dupla face, quase perigosa (e Hitchcock me vem à mente), da qual Scott Fitzgerald falava, que nos mostra a tragédia da vida: viver e morrer. No entanto, esse conhecimento é a única possibilidade que temos de ajudar os outros a viver melhor.
Por que Alfred Hitchcock lhe veio à mente?
Eu gosto muito dele, particularmente o filme O homem que sabia demais. Perto do fim do filme, o protagonista interpretado por James Stewart diz algo mais ou menos assim: "Mesmo um pouco de conhecimento pode ser muito perigoso". De fato, no filme, ele terá um fim terrível.
Que importância tem a biologia no seu trabalho?
Tudo pode ser melhor entendido se o olharmos em uma perspectiva biológica. Os nossos sistemas biológicos são sistemas econômicos, ou seja, sistemas que operam em um ambiente social. Isso pode nos ajudar a compreender a nossa sociedade que, no fundo, se comporta como um sistema biológico, baseado no sucesso e no fracasso. Os sistemas morais, religiosos, econômicos, assim como as leis ou a medicina e as artes, nada mais são do que uma projeção de um sistema biológico.
E como se concilia esse viver biológico com a consciência que temos de nós mesmos?
A nossa condição de seres vivos é uma luta contra a doença e a morte. É uma batalha constante. Sempre devemos lutar para manter uma "condição homeostática". Essa condição oscila entre o bom funcionamento e o mau funcionamento. Desde o início biológico e evolutivo, historicamente, aparecem esses yin e yang, um sob a forma do prazer, e o outro sob a forma da dor. E viver é estar no meio disso. Devemos navegar entre a muita dor que te mata e a muita felicidade que te mata da mesma forma.
O senhor está satisfeito com as suas pesquisas?
Não, por nada: eu consegui esclarecer algumas ideias, mas descobri muitas outras a serem desenvolvidas e estudadas. Nas palavras de Scott Fitzgerald, no fim de O Grande Gatsby: somos um navio que sempre vai contra a corrente, um pouco para a frente e um pouco para trás.
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