O Biblioburro é uma biblioteca itinerante que distribui livros nas costas de duas burros, Alfa e Beto. Este programa desenvolveu-se em La Gloria, Colômbia, por conta de Luis Soriano, que ganhou o apelido de El Profesor
Colombia criou biblioteca itinerante montada em cima de seus burros. O Biblioburro leva educação a regiões empobrecidas do pais (por Simón Romero - The New Youk Times)
Num ritual repetido quase todos os finais de semana
da década passada em La Gloria, região da Colômbia fatigada pela guerra, Luis
Soriano reuniu seus dois burros, Alfa e Beto, na frente de sua casa numa
recente tarde de sábado.
Já transpirando sob o implacável sol, ele amarrou
nas costas dos animais bolsas com a palavra “Biblioburro” pintada em letras
azuis, e as encheu com uma eclética carga de livros destinados aos habitantes
das pequenas vilas mais além. Suas escolhas incluíam “Anaconda”, a fábula
animal do escritor uruguaio Horacio Quiroga que evoca “The Jungle Book”, de
Kipling; alguns livros de fotos da Time-Life (na Escandinávia, no Japão e nas
Antilhas); e o “Dicionário da Academia Real da Linguagem Espanhola”.
“Comecei com 70 livros, e agora tenho uma coleção
com mais de 4.800”, disse Soriano, 36 anos, professor de escola primária que
vive aqui numa pequena casa com sua esposa, seus três filhos, e livros
empilhados até o teto.
“Tudo começou como uma necessidade; então se tornou
uma obrigação; e depois disso, um hábito”, explicou ele, olhando as montanhas
se ondulando no horizonte. “Agora”, disse, “é uma instituição”.
O Biblioburro de Soriano é uma pequena instituição:
um homem e dois burros. Ele a criou a partir da simples crença de que o ato de
levar livros a pessoas que não os têm poderia, de alguma forma, melhorar esta
região empobrecida – e talvez a Colômbia.
Ao fazer isso, Soriano emergiu como o mais
conhecido residente de La Gloria, uma cidade que se sente isolada dos ritmos do
mundo maior. Soriano nunca saiu da Colômbia – mas se mantém dedicado a trazer a
seu povo um toque do mundo externo. Seu projeto ganhou a aprovação de
especialistas em alfabetização do país e é o assunto de um novo documentário de
um cineasta colombiano, Carlos Rendon Zipaguata.
Poder transformador
Ele disse que a idéia surgiu após ele haver
testemunhado, como jovem professor, o poder transformador da leitura entre seus
pupilos, que haviam nascido em meio a conflitos ainda mais intensos do que
quando ele era criança. A violência de grupos criminosos era tão ruim durante
sua infância que seus pais o enviaram para viver com sua avó na cidade vizinha
de Valledupar, próxima à fronteira venezuelana. Ele retornou aos 16 anos com um
diploma do colegial e conseguiu um emprego ensinando leitura a crianças em
idade escolar. Quando ele tinha vinte e poucos anos, a prolongada guerra
interna da Colômbia havia atraído grupos paramilitares aos anárquicos pântanos
e colinas ao redor de La Gloria, levando a confrontos com grupos guerrilheiros
e à intimidação da população local por ambos os lados. Em meio a essa
violência, que desde então tem diminuído, Soriano se aventurou com seus buros,
levando consigo alguns livros escolares, volumes de enciclopédias e romances de
sua pequena biblioteca particular. Em paradas ao longo do caminho, crianças
ainda esperam pelo professor em grupos, para ouvi-lo ler trechos dos livros
antes de pedi-los emprestados. Um avanço veio muitos anos depois, quando ele
ouviu no rádio trechos de um romance, “The Ballad of Maria Abdala,” de Juan Gossaín,
escritor e jornalista colombiano. Soriano escreveu uma carta ao autor, pedindo
o empréstimo de uma cópia do livro para o Biblioburro.
Doações Após Gossaín transmitir detalhes
do projeto de Soriano em seu programa de rádio, houve uma avalanche de doações
de livros por toda a Colômbia. Uma instituição financeira local, Cajamag,
ofereceu algum financiamento para a construção de uma pequena biblioteca perto
de sua casa, mas o projeto permanece inacabado por falta de fundos. Sobra pouco
dinheiro para tais luxos em seu salário de professor, cerca de 350 dólares
mensais. O orçamento familiar é tão apertado que ele e sua mulher, Diana,
abriram um pequeno restaurante, La Cosa Politica, há dois anos para ajudar no fim
do mês. Mesmo entre a clientela do restaurante, principalmente trabalhadores de
fazenda e motoristas de caminhão com pouca educação formal, Soriano vê
potenciais bibliófilos. Na parede sobre as mesas, ao lado de carnes grelhadas e
ervas fritas, ele pendura páginas do Hoy Diario, o jornal diário da região, e
transforma jantares em debates sobre eventos atuais. “Não podemos ir muito
longe com a conversa política, é claro,” disse ele, se referindo à constate
ameaça de retaliação por grupos paramilitares, que efetivamente derrotaram os
grupos guerrilheiros nesta parte norte da Colômbia. “Aprendi que se eu
despertar o interesse de apenas uma pessoa em ler um mundano item de notícia –
digamos, sobre o aumento no preço do arroz –, isso já será um grande passo para
frente.” Essas vitórias mantêm Soriano caminhando, apesar dos desafios que
acompanham o Biblioburro. Ele fraturou a perna esquerda numa queda de um de
seus burros em julho, ficando um pouco manco. E alguns de seus leitores gostam
tanto dos livros emprestados que acabam não os devolvendo.
Paulo Coelho, o favorito
Dois livros que desapareceram há não muito tempo:
um manual educacional ilustrado sobre sexo, e uma cópia de “Como Água para
Chocolate”, romance da escritora mexicana Laura Esquivel sobre comida e amor
numa tradicional família mexicana. E há perigos inerentes ao se aventurar nas
terras que circundam La Gloria. Há dois anos, disse Soriano, ladrões o
surpreenderam no cruzamento de um rio, descobriram que ele não carregava quase
nenhum dinheiro e o amarraram a uma árvore. Roubaram um item de sua bolsa de
livros: “Brida”, a história de uma garota irlandesa e sua busca por
conhecimento, do romancista Paulo Coelho. “Por alguma razão, Paulo Coelho está
no topo da lista de favoritos de todo mundo”, disse Soriano, escondendo um riso
sob a sombra de seu sombrero vueltiao, o elaborado chapéu trançado popular no
interior da Colômbia. Numa viagem neste mês pelas irregulares montanhas, onde
cerca de 300 pessoas emprestam regularmente seus livros, ele relembrou uma
visita à Biblioteca Nacional na capital, Bogotá, onde ficou impressionado com a
imensa coleção do edifício e sua arquitetura Art Deco. “Me senti tão medíocre
em Bogotá”, disse Sorano. “Meu lugar é aqui.” Por vezes, nas remotas paisagens
pontilhadas por árvores guayacán, era duro dizer quem estava no comando, homem
ou animal. Numa ocasião, Soriano perdeu sua paciência, tentando persuadir seus
teimosos burros a atravessar um riacho. Ainda assim, fica muito claro por que
Soriano faz o que faz. Na vila de El Brasil, Ingrid Ospina, 18 anos, folheava
uma cópia de “Margarita”, o clássico livro de poesia de Rubén Darío da
Nicarágua, quando começou a ler em voz alta. Ela foi além de onde estão os
céus e disse à lua, au revoir. Que travessa ter voado tão longe sem a permissão
de Papai. “Isso é tão lindo, professor”, disse Ospina. “Quando você volta?”
Este artigo foi originalmente
postado em G1 NOTÍCIAS
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