Vida
espiritual é assunto que só diz respeito a religiosos, certo? Não, errado. A
espiritualidade está presente em todos os momentos da vida. Lavar a roupa,
varrer o chão, cozinhar podem ser ótimos para o desenvolvimento interior
Por: Eduardo Araia
No Ocidente do tempo escasso e do materialismo opressivo, vida
espiritual parece à primeira vista um assunto que só diz respeito a religiosos.
Dedicar tempo à espiritualidade, pensam os leigos, é missão para algum momento
no fim de semana, e com sacrifício – afinal, há prioridades como contas a
pagar, obstáculos profissionais a vencer, cuidados com o lar, problemas com
cônjuge e filhos...
Nada mais falso. A espiritualidade está presente em todos os
momentos da vida. Basta abrir os olhos para descobri-la em nosso cotidiano, com
todo o extraordinário potencial de desenvolvimento interior que ela nos traz.
Lave a roupa suja
Um exemplo poderoso disso é a narrativa da readaptação de um
lama ocidental à sua terra, após três anos de retiro no Tibete. Segundo seu
relato – mencionado no livro Depois do Êxtase, Lave a Roupa Suja, do psicólogo
e monge budista Jack Kornfield –, nos cinco primeiros anos após o retorno ele
penou para ligar-se à vida espiritual, pois em nosso dia a dia as pessoas
"só têm sensibilidade para correr atrás das coisas". Para manter o
que aprendera e equilibrar sua mente, o lama usava um recurso surpreendente em
sua simplicidade: a limpeza.
"Em silêncio, eu cantava um mantra de compaixão a cada
prato que lavava, a cada chão que esfregava", conta. "Fazia também
uma prece para que todos os pisos e o coração de todos os seres à minha volta
ficassem limpos, purificados e inocentes. O tempo parava como se eu fosse parte
da terra que se purifica na primavera. (...) As tarefas físicas mais simples
nos ensinam a ficar neste mundo de maneira sagrada."
À primeira vista, a ideia de lavar pratos para progredir
espiritualmente parece uma grande tolice. Mas todas as tradições espirituais
ressaltam a importância de sermos seres integrais – e como conseguiríamos isso
ignorando o que pensamos e fazemos no cotidiano?
A busca da gratificação imediata
Conciliar espiritualidade e dia a dia não é tarefa simples em
nenhum lugar do planeta. No Ocidente, o principal obstáculo é nossa cultura
consumista, que impele as pessoas a buscar gratificação imediata e externa – a
roupa da moda, o celular de última geração, o carro importado. Com isso, a
espiritualidade fica em plano secundário, e a maior parte do tempo é vivida
como se as crenças religiosas, morais ou éticas nem existissem.
Mas é impossível fugir do cotidiano. Atos como pagar contas, ir
ao trabalho ou levar os filhos à escola também são espiritualmente importantes,
e sem ter consciência disso não podemos evoluir. "Não dá para acertar num
departamento da vida e continuar errando em outro", afirmou Gandhi.
"A vida é um todo indivisível."
Para iniciar essa revisão do dia a dia, nada melhor do que a
família. Existe lugar mais adequado do que o próprio lar para refinar a
tolerância, o respeito e o despir-se de preconceitos e expectativas para ver a
vida como ela é? "Se cuidarmos bem das relações com a família nesta vida,
mais de 90% da nossa tarefa aqui terá sido cumprida", observa Martha
Gallego Thomaz, dirigente do Grupo Noel, instituição espírita de São Paulo.
Outro item crucial é o dinheiro, energia de troca que funciona
como um excelente professor – para o mal e para o bem – no caminho espiritual.
A supervalorização que o Ocidente lhe atribui conduz à ganância, à avareza, ao
medo da escassez. Em seu lado positivo, porém, o dinheiro serve para disseminar
prosperidade, remunera o trabalho feito com amor e, como energia, nunca deve
ficar estagnado.
Desenvolver a atenção plena
Entrar em contato com a espiritualidade no cotidiano exige
desenvolver o que o budismo chama de atenção plena. De acordo com o escritor
David Spangler, essa observação atenta e sem julgamento do que ocorre a cada
instante nos leva a uma profunda consciência, que nos dá insights sobre o mundo
e nós mesmos. A atenção plena nos permite reagir ao presente de modo mais
espontâneo e livre.
Spangler exemplifica como a atenção plena pode transmutar as
atividades do dia a dia:
Pagar as contas – Preocupações e medos a esse respeito cedem
espaço para um confronto com o sistema de crenças ligado ao dinheiro. Analisar
essas crenças sem julgá-las enfraquece a programação mental que governa essa
área e permite à pessoa optar por formas mais efetivas de agir.
Ir ao supermercado – Em vez de simples necessidade de
abastecimento do lar, essa atividade passa a ser encarada como o ponto final de
uma vasta rede de distribuição que liga a produção de milhares de pessoas ao
seu bairro. Comprar conscientemente é também admirar-se com a abundância de
mercadorias e exercitar o discernimento – selecionando, por exemplo, produtos
orgânicos ou que não agridam o meio ambiente.
Educar os filhos – A tendência a impor restrições constantes à
criança cede espaço para a percepção de suas facetas positivas, como solucionar
problemas aparentemente além de sua capacidade ou partilhar brinquedos com os
colegas sem ser instruída a isso.
Descobrir a espiritualidade no dia a dia significa ter muito
mais recursos para equilibrar-se e mudar o futuro pessoal. A vida seguirá com
êxitos e fracassos, mas a mente aprende, sem entrar em desequilíbrio, a extrair
lições de todas as situações. "Em tudo que uma pessoa faz é possível criar
e manter um estado de ser que reflete nosso verdadeiro destino", observa
Karlfried Graf von Dürckheim em Daily Life as Spiritual Exercise. "Quando
essa possibilidade é posta em prática, o dia comum não é mais comum. Ele se
torna uma aventura do espírito."
http://www.brasil247.com/pt/247/revista_oasis/105125/O-Tao-da-faxina-Quando-o-trabalho-vira-medita%C3%A7%C3%A3o.htm